O primeiro passo para uma guerra não é montar um exército, mas, sim,
"desumanizar os que vão ser agredidos". Nesse momento de vida em
suspensão, diz Mia Couto à reportagem, "o amor é uma resposta de
sobrevivência, uma força desconhecida que faz com que não desesperemos
de atingir uma outra margem".
Aos 61 anos, o escritor moçambicano foi testemunha da guerra da
independência de seu país (1964-1975) -então uma província de Portugal- e
de uma guerra civil (1977-1992) entre nacionalistas marxistas e
guerrilheiros de direita. Conhece bem as particularidades da afeição
capaz de brotar em zonas de conflito.
"Assisti a barbaridades que não quero nunca mais recordar. Mas no meio
dessa crueldade erguida em sistema também testemunhei manifestações de
solidariedade e de afeito que dificilmente poderiam ser reveladas em
condições de normalidade social."
O amor em tempos de guerra poderia ser o ponto central da trilogia "As
Areias do Imperador", cujo segundo livro, "Sombras da Água", acaba de
chegar às livrarias.
A série tem como palco o sul de Moçambique do fim do século 19, quando a
região era governada por Ngungunyane, o último grande líder do Estado
de Gaza. Neste cenário, o sargento português Germano de Melo encontra
Imani, uma garota de 15 anos da tribo dos Vatxopi que aprendeu a língua e
os costumes dos europeus.
Este volume -que, como o anterior, entrelaça a narrativa de Imani e
cartas enviadas e recebidas por Gemano de Melo- começa com o sargento
ferido, sendo transportado ao único hospital de Gaza. Está na companhia
de sua amada -quem desferiu o tiro que lhe esfacelou as mãos-, além do
pai e do irmão da africana e uma amiga italiana.
Para Mia Couto, contudo, é mais que um texto sobre paixão e guerra
quaisquer: é sobre "um amor no meio de um crime que é o rapto de uma
história". Seu desejo é contar a história que a História não conta.
"Este livro fala de como uma narrativa de intervenção colonizadora foi
partilhada por europeus e africanos", diz.
Ele explica que, no século 19, o sul de Moçambique foi ocupado de uma
forma disputada por portugueses e pelo exército dos Vangunis, que
criaram um império que durou mais de meio século.
"Na verdade havia dois colonizadores: um europeu e outro africano. A
ideia é sugerir que a história de Moçambique -como a de qualquer outra
nação- foi simplificada por uma única versão: a dos vencedores. Essa
narrativa gloriosa anulou as outras versões do passado que é preciso
resgatar e dignificar."
Sem essas versões do passado, o vínculo do descendentes dos atores do
conflito se perde. "Naquela região, esse deslocamento foi e continua a
ser imposto -as pessoas são empurradas para fora da sua religião, da sua
língua, da sua cultura e da ligação sagrada que possuem com a terra e
os antepassados", diz. "As próprias elites africanas reproduzem essa
sistemática anulação do que é estranho a um modelo globalizado de
comportamento."
SOMBRAS DA ÁGUA
AUTOR Mia Couto
EDITORA Companhia das Letras
QUANTO R$ 44,90 (392 págs.)
[Fonte: www.jornalcruzeiro.com.br]
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