Ideia atraiu interessados em aprender idioma e saber mais sobre a África.
Escrito por Joyce Heurich
Desde que chegou a Porto Alegre, há cerca de um ano, o senegalês Mawloud Sourang Júnior, de 28 anos, já trabalhou como lavador de carros, recepcionista de hospital e vendedor ambulante. Recentemente, começou a dar aulas de francês em um projeto recém-criado na cidade, e que tem a proposta de incentivar troca cultural.
O convite para ensinar o idioma a brasileiros veio no momento certo, quando o imigrante já pensava em se mudar para o Rio de Janeiro em busca de novas oportunidades.
Decidiu alterar os planos, cancelar a viagem e abraçar um projeto que começou a ganhar forma, efetivamente, a partir do seu “sim”. Júnior, como é conhecido pelos gaúchos, tornou-se o primeiro professor do "Bonne Chance", ou "Boa Sorte" em português.
A iniciativa, concebida por duas amigas da capital, já envolve outros três imigrantes, sendo dois do Senegal e um da Costa do Marfim.
Os quatro africanos estão ensinando o idioma oficial de seus países para brasileiros desde o início desta semana, quando os encontros começaram a ocorrer.
“Como socióloga, mas, principalmente, como ser humano, me incomodava muito vê-los nas calçadas, vendendo produtos e, muitas vezes, invisíveis para as pessoas”, explica Ana Emília Cardoso, uma das idealizadoras do projeto.
Para ministrar as aulas, Júnior chega acompanhado de uma mala em um suporte de rodinhas, onde carrega fones de ouvido, carregadores e aparelhos de mp3. Os equipamentos nada têm a ver com a lição do dia.
É que, apesar da nova ocupação gerar uma renda extra, Júnior não abriu mão de seguir vendendo seus produtos. E nem é esse o objetivo do projeto. "Tem mais a ver com levantar a autoestima deles e proporcionar um resgate cultural", reforça Ana.
Foi nas ruas da capital que Marjorie Hattge, outra motivadora do Bonne Chance, conheceu Júnior, mais precisamente na Avenida Protásio Alves, onde ele costuma montar seu negócio para garantir o sustento no fim do mês.
Ela procurava um fone para o seu celular e decidiu testar todas as opções. Marjorie conta que Júnior fez questão de atendê-la pacientemente e, no momento, lembrou da missão dada pela amiga Ana: encontrar um imigrante para dar aulas de francês.
"Achei o cara legal, vi que falava bem português , e aí eu perguntei: 'tu é de onde? O que tu fazia no Senegal?'", lembra Marjorie.
Após ouvir a história do homem de fala mansa e sorriso tímido, se deu conta de que havia achado a pessoa ideal para apresentar à amiga.
Esculpindo o Bonne Chance
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Aulas de francês são oferecidas para iniciantes
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A proposta inicial era reunir um grupo pequeno, de nível intermediário ou avançado em francês, para um bate-papo com Júnior, que contaria curiosidades sobre sua terra natal e o modo de vida na África.
O que Ana não imaginava é que uma ideia tão simples mobilizaria tanta gente. Para a surpresa dela, um post despretensioso em uma rede social foi o suficiente para atrair mais de 600 interessados.
"Aquela ideia 'super', meu Deus, como que ninguém pensou? Já pensaram, né? Mas como é que todo mundo não está pesando nisso? É tão simples, os caras têm todo esse potencial, esse conhecimento, e a gente não sabe", observa Marjorie.
Apesar de dominarem o francês, o único que já havia dado aulas antes era Júnior. Os demais ocupariam a posição de professor pela primeira vez.
Diante de tanta procura, a dupla de amigas começou a trabalhar. Foi atrás de outros imigrantes e selecionou aqueles que apresentavam melhor letramento.
Diferentemente do que Ana havia pensado, 80% dos interessados procuravam aulas de nível básico, por isso precisou fazer um treinamento com os imigrantes para prepará-los.
"O grande desafio hoje é treinar pessoas que nunca deram a aula para darem aula a pessoas que não sabem absolutamente nada da língua", afirma Ana.
Experimento
Bastaram um quadro branco, algumas cadeiras e “voilà”: estava montada a sala de aula improvisada no local cedido pela Associação Cultural Vila Flores. Nada de formalidade, a ideia é experimentar e provocar a troca de conhecimento.
Assim como o espaço, o clima das aulas é de descontração. Já no primeiro encontro, os alunos arriscam alguns diálogos na língua estrangeira.
"Eu achei muito divertida, principalmente, e achei um pouco difícil. Mas foi bem legal, porque a gente já começou fazendo diálogo, então, acho que a pronúncia a gente vai pegar meio rápido", avalia a aluna Carolina Schumann, de 19 anos, sobre sua primeira aula.
Os encontros ocorrem nas segundas, terças, quintas e sextas, nos turnos da manhã e da tarde. A mensalidade custa R$ 100, e é destinada ao pagamento dos professores e custos com materiais.
O perfil dos estudantes é bem variado, são pessoas de diferentes idades e profissões. "A troca cultural tá chamando atenção, e também por valorizar o ser humano em si", sugere Marjorie.
Enquanto ensinam francês, os professores estrangeiros aproveitam para diminuir os tropeços na língua portuguesa com ajuda dos alunos. "Francês é bem mais fácil do que português, tô achando o português difícil, complicado", confessa Júnior, que se sente mais à vontade falando wolof, língua mais usada no Senegal.
Embora ainda esteja em construção, a reação de alunos e professores ao fim de cada aula já reflete o sucesso da iniciativa. "Eu noto uma diferença na postura deles, uma alegria de estar falando como professor, um orgulho de estar dando aula", percebe Ana.
Desde que o Bonne Chance foi divulgado, Ana já foi procurada por pessoas de várias partes do Brasil, interessadas em ajudar ou copiar a ação.
O plano das amigas, agora, é sistematizar o método e multiplicar essa iniciativa.
"Minha ideia não é que todo mundo venha estudar francês aqui, mas sim que as pessoas reproduzam esta ideia. Que juntem as pessoas para aprender um instrumento musical, uma culinária, e convidem um imigrante para ser professor", projeta Ana, animada. "Eu quero essas sementes de inclusão espalhadas por toda parte", finaliza.
'Aqui tem gente muito hospitaleira', diz imigrante
Primeiro professor do Bonne Chance, Júnior divide um apartamento com um conterrâneo em Porto Alegre. Ele está entre os 15 mil estrangeiros que vieram para o Rio Grande do Sul nos últimos dois anos. Deixou a casa no Senegal, onde morava com a família, aos 26. Deixou também uma namorada, a Dadá.
Antes de viajar para o Brasil, conquistou dois diplomas, formou-se em Direito e Administração de Empresas. Trabalhava em uma companhia de marketing, mas via mais possibilidades na América do Sul.
"Achei um país legal, tranquilo, é um país onde eu conseguiria emprego", comenta Júnior, sobre os motivos que o trouxeram para cá.
Ao cruzar o Oceano Atlântico, decidiu se estabelecer em Santa Catarina, onde ficou por três meses, antes de se mudar para o Mato Grosso. Foi só depois que veio para a capital gaúcha, seu destino eleito o preferido até então.
"Aqui tem gente muito hospitaleira. Aqui no Sul, todos são muito receptivos. Me sinto bem aqui", opina o imigrante.
Para diminuir a saudade, ele costuma falar diariamente com a namorada, ou melhor, esposa, pela internet. Júnior casou-se à distância com Dadá. "Fui representado pelo meu irmão, para assinar o documento do casamento", explica.
Falando em casamento, o jovem contou ainda que no Senegal é permitido que o homem case com até quatro mulheres, mas garante, em meio a risos, que tem apenas uma, e que pretende construir uma família - e quer que a companheira venha para o Brasil quando acabar os estudos.
Se vai ter filhos? "Claro que sim", afirma, enfático. "A família de lá é bem maior, a família daqui é pai, mãe e filho (risos). Tenho uma família bem grande, lá eles moram todos juntos, na mesma casa", completa Júnior.
[Fotos da autora - fonte: www.globo.com]
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