Por DOREEN CARVAJAL
do 'NEW YORK TIMES'
Há elementos absurdos na vida de Kamel Daoud, escritor
argelino cujo romance de estreia gerou calorosas resenhas internacionais,
honras literárias e então, subitamente, pedidos de sua execução pública.
Seu livro, "Meursault,
Counter-Investigation" (Meursault, contrainvestigação) é uma retomada do
clássico "O Estrangeiro", de Albert Camus, na qual Daoud dá voz ao
irmão do árabe anônimo que é assassinado a tiros em Argel.
O romance de Camus lançado em
1942, que explora o absurdo e a falta de sentido da vida, teve grande
influência sobre Daoud, que agora está lidando pessoalmente com uma realidade
grotesca: uma fatwa, ou sentença de morte, emitida por um imã salafista da
Argélia.
Ninguém foi detido por
envolvimento nessa ameaça de morte, que veio à tona em 16 de dezembro.
Todavia, ela provocou um
debate na Argélia sobre a legitimidade de um imã sem instrução emitir uma
fatwa. Não está claro se a ameaça foi causada pelas aparições de Daoud na
televisão ou pelo personagem de seu romance, que repreende um imã de bairro.
"Eu continuo sem
proteção", disse Daoud, 44, que se refugiou em sua casa em Orã, a segunda
maior cidade da Argélia. "É uma estratégia para me forçar a ir para o
exílio e para manipular a opinião pública com velhos fantasmas da década de
1990 e lembranças da guerra civil no país."
Os leitores reagiram. A
Barzakh Editions, que publica os livros de Daoud na Argélia, teve o estoque de
suas obras esgotado e está imprimindo mais exemplares. Direitos de publicação
foram vendidos em 13 países, incluindo China e Turquia.
Em novembro, o romance de
Daoud quase ganhou o prêmio Goncourt, a maior honra literária da França para
ficção no idioma francês. Isso levou a aparições do autor na TV francesa,
inclusive uma na qual Daoud observou que "religião é uma questão vital no
mundo árabe" e que "precisamos refletir sobre isso para
avançar".
Logo em seguida, a condenação
foi lançada por Abdelfatah Hamadache, islamista radical à frente de um obscuro
grupo salafista, a Frente do Despertar Islâmico.
Rotulando Daoud como
"inimigo da religião", ele conclamou o Estado argelino a impor a
execução pública de Daoud, devido "à guerra que ele está empreendendo
contra Deus e o profeta".
Daoud disse estar acostumado
com insultos, pois escreve sobre assuntos como a corrupção do governo em suas
colunas para o jornal "Le Quotidien d'Oran". No entanto, ele afirmou
que essa foi a primeira ameaça de morte que já recebeu.
Sofiane Hadjadj, editor de Daoud, disse que críticos estão enfocando o final do
livro, no qual o irmão do árabe assassinado repreende um imã por desperdiçar
seu tempo em uma discussão sobre Deus.
O que o debate atual não leva em conta é que Daoud
desenvolveu sua ideia de dar vida ao personagem árabe anônimo do livro de
Camus. No romance de Daoud, o irmão da vítima, já com mais de 70 anos, conta
sua versão do "segundo personagem mais importante" no crime,
"que não tem nome, nem rosto, nem palavras".
[Fonte: www.folha.com.br]
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