O cantor e compositor brasileiro fez da apresentação de Foi no Mês Que Vem no São Luiz, em Lisboa, um momento de criação irrepetível. Gisela João, Mário Laginha e Carlos Moscardini foram os ilustres cúmplices.
Laginha, Ramil, Gisela e Moscardini juntos no São Luiz |
Por NUNO PACHECO
Se há concertos que dá pena não terem sido gravados, este é um deles. Não que Vitor Ramil tivesse, por si mesmo, superado as apresentações que já dele vimos em Lisboa (excelentes apresentações, diga-se, em 2009, 2011 e 2012), mas porque a conjugação do seu talento com o dos três convidados da noite proporcionou momentos únicos.
Com Carlos Moscardini, violonista argentino, repetiu a química de 2012, com a vantagem de se mostrar cada vez mais rica a cumplicidade gaúcha de ambos; com Gisela João fez duetos acertados e calorosos; com Mário Laginha deu asas à criatividade de ambos. Na base de tudo, um cancioneiro soberbo e inteligente, prova do talento maior do seu autor.
Quem ouve Vitor Ramil, conhecendo-o de antes ou só agora, verá nele uma espécie de Caetano Veloso gaúcho (Ramil nasceu no Rio Grande do Sul, em 1962), pela maneira como trabalha as palavras mas também por semelhanças de timbre. Mas Vitor Ramil é “sul”, horizonte, melancolia, tem o peso de um outro sentir latino-americano, sendo igualmente brasileiro. Daí a sua singularidade, não confundível com nenhuma outra.
Vitor Ramil abriu o espectáculo sozinho, voz e violão de cordas de aço, primeiro com Foi no mês que vem, título do duplo disco que tem vindo a lançar, depois com Espaço.
Gisela João entrou em seguida, de negro mas jovial como sempre, para dois duetos. No primeiro, Invento, o tom de voz grave parecia ameaçar caminhos avessos à canção, mas a arte vocal dela impôs-se, sem mácula, certeira nos tempos, admirável no remate das frases. Aplausos mais que merecidos. No segundo tema, Estrela, estrela, voz já mais aberta pelo tema anterior, Gisela brilhou com toda a segurança que lhe conhecemos. Sem sinais de vedetismo, pose de menina (“posso contar a história?”, pediu ela, para explicar como chegara à canção) e uma voz de espantar. Dá gosto ver cantoras assim.
Num ápice, mas com as devidas explicações do anfitrião, Gisela deu lugar a Carlos Moscardini. Um primor nas cordas, discreto e brilhante, foi a segunda “voz” apenas com a agilidade certeira dos dedos, enriquecendo o discurso de canções que de certo modo já começam a ser também, suas: Ramilonga, Noite de São João (esta com poema de Fernando Pessoa), Milonga de los morenos, Deixando o pago e Mango. Exemplar.
Antes de entrar em palco o terceiro convidado, Vitor cantou sozinho Loucos de Cara, numa recriação inspirada e magneticamente visceral.
Com Mário Laginha, Vitor Ramil experimentou (tal como sucedera com Gisela João) outra estreia absoluta. O começo foi muito bom, com Mário no piano de cauda a virar as "folhas" de Livro aberto como se já conhecesse há muito as subtilezas da canção. Depois foi a vez de Ramil, sem livro mas com uma folha à frente, cantar Um amor, que Laginha escreveu para o disco Chorinho Feliz, gravado no ano 2000 com Maria João (que a cantava em dueto com Gilberto Gil). Saiu-se muito bem. Já O copo e a tempestade, que no original era só voz e pandeiro (o de Marcos Suzano), foi aqui voz e Fender Rhodes, com Mário criativo e exuberante na recriação das síncopas. Um portento. Continuando Mário Laginha no Fender, Carlos Moscardini juntou-se a ambos para, em trio, abençoarem Não é céu. Se não era, pareceu.
O encore teve direito, de entrada, a uma estreia absoluta: de um livro de António Botto, Vitor Ramil tirou um poema (Cantiga) e fez um samba, quase samba-enredo. “Se eu fosse alguém ou mandasse/ Neste mundo de vileza/ Só pensava numa coisa/ — Acabar com a pobreza”. Só ouvido. Astronauta lírico soou como sempre, magnífico, e, pela primeira vez todos juntos, voltaram a Estrela, estrela. Num admirável firmamento.
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