Qanaf Badi, 65, caminha por um corredor empoeirado, pisa em uma cadeira, passa por um buraco rasgado na parede e sobe uma escada. Chega, por fim, a seu tesouro: um amontoado de cópias do Alcorão recolhidas do lixo.
Trabalhador fabril aposentado e pai de oito filhos, esse iemenita passa seus dias perambulando pela capital, Sanaa, à procura de exemplares do livro sagrado do islamismo descartados por seus antigos donos.
Para muçulmanos, o Alcorão é a revelação de Deus a Maomé e deve, por isso, ser tratado com deferência. Não pode, para conservadores, ser jogado no lixo -daí a missão que, para Qanaf Badi, é sagrada.
Ele mantém em seu telhado mais de 3.000 livros, sem contar folhetos e cartazes que, por trazerem o nome de Deus, também ganharam espaço nesse refúgio embaixo do forte sol iemenita.
Badi começou a recolher o Alcorão em 2008, após uma revelação. "De repente, senti que tinha de fazer isso. O Alcorão é um livro sagrado, então deveria estar em um lugar limpo."
Após a primeira reza do dia, de manhã, ele deixa sua casa e revira os lixos da região. Às vezes, diz, vê em sonhos onde estão os livros que precisam ser resgatados.
SONHAR COM MAOMÉ
"Mas ainda quero sonhar com o profeta Maomé", afirma, referindo-se a uma tradicional recompensa dada aos pios no islamismo. "Oxalá um dia vou vê-lo também."
Badi, nascido em um Iêmen governado por líderes muçulmanos, aprendeu a ler sob a sombra de árvores, em escolas religiosas. Ele mantém uma consciência religiosa que, aos poucos, tem diminuído no país.
"Infelizmente, as pessoas hoje não sabem como é terrível jogar o livro sagrado nas ruas", diz. A maior parte de sua biblioteca vem de edições escolares do Alcorão descartadas após os exames finais.
"Mesmo os professores estão errados. Eles obrigam os alunos a escrever versos do livro como um exercício e depois o jogam fora."
Para Badi, qualquer pedaço de papel com o nome de Deus escrito deve ser mantido. Ele conta à reportagem a história de um homem que teria recolhido uma folha com o nome de Allah (Deus, em árabe) e a perfumado -sendo visitado em sonhos, depois, pelo profeta.
"Fico especialmente desolado quando encontro exemplares sujos de fezes no lixo", diz. "Essa é a palavra de Deus. É mais importante do que minha própria vida."
'LOUCO'
Em cima de seu telhado, procurando por suas edições preferidas do livro, Badi mostra cartas trocadas com autoridades locais a respeito de sua tarefa. Ele quer ajuda do governo e das mesquitas, mas por enquanto não obteve respostas positivas. "Eu disse a eles que são os responsáveis pela palavra de Deus."
"Tudo o que posso fazer é deixar os livros aqui. É o único lugar que tenho. Quando chove, eu os cubro com plástico. É claro que vai molhar, mas estou fazendo meu melhor", continua.
A insistência de Badi em recolher os exemplares do Alcorão, porém, já fez com que esse iemenita fosse chamado de "majnun" por seus vizinhos -aquele tomado por gênios, "jinn", ou simplesmente "louco".
"Tenho problemas com a minha família", diz. "Eles me dizem que eu deveria queimar os livros, já que não temos espaço em casa."
"As pessoas andam tão preocupadas com a vida", afirma Badi. "Só que não estão preocupadas com o significado da vida."
[Foto: Folhapress - fonte: www.folha.com.br]
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