A gastronomia pode servir de critério para as relações do povo brasileiro com as palavras estrangeiras
Escrito por John Robert Schmitz
O vocábulo "gastronoglobalização" é, por óbvio, a fusão das palavras
"gastronomia" e "globalização". A globalização é um fenômeno considerado
benéfico para alguns e problemático para outros. Faço uso do neologismo para
referir-me à importação e exportação ou à troca de "comes e bebes" entre os
diferentes países neste mundo cada vez mais interligado.
Nesta segunda
década do século 21, quem viaja pelo mundo e se hospeda em hotéis ou frequenta
restaurantes, cantinas e lanchonetes em Londres, Tóquio ou Paris não deixa de
notar nos cardápios palavras em pleno português, como "feijoada", "caipirinha",
"caipiroska" e "guaraná". O que é agradável ao paladar sempre circula pelo
mundo. O tomate, o milho, a batata e o chocolate são originários do continente
americano, mas presentes em cozinhas, alpendres, supermercados e quitandas de
toda parte. O prato de origem húngara gulyás (grafado "gulache" em
português) e o "estrogonofe" são apreciados no mundo inteiro. Os brasileiros que
vivem no exterior não precisam esperar o retorno para tomar suas cairpirinhas.
Quem visita Curitiba não demora a conhecer a iguaria de origem polonesa
"pieroque" ou "pirogue", tipo de pastel cozido à base de massa, levedada com
diferentes recheios. Um estrangeiro que conhece o Nordeste bem pode descobrir a
"cartola", sobremesa de banana fatiada, coberta de queijo, canela e açúcar. Quem
anda pelas ruas de Manaus encontra barracas de "tacacá", uma sopa de mandioca,
camarões, molho de tucupi e outras especiarias.
Pode ser que a cartola e
o tacacá um dia apareçam no estrangeiro. A internet apresenta páginas com
receitas de pirogues, cartolas e tacacás em vários idiomas. Alguns visitantes ao
Brasil vão se lembrar dos vocábulos, o que é meio caminho andado para fixar a
palavra no exterior. Bons candidatos são o vatapá e o acarajé.
Receitas
No Brasil, é curioso ver que quem reclama
de vocábulos como delivery e deletar (do inglês "delete" pelo
latim deletum, do verbo delere) não implica com as palavras de
origem japonesa que aparecem em cardápios, como temaki, sushi,
guioza, teppanyaki, shitake e sashimi. De
fato, a cultura alimentícia japonesa é globalizada, segundo o professor Isao
Kumakura, docente do Museu Nacional de Etnologia no Japão (The Globalization
of Japanese Food Culture).
A comida italiana está presente no
Brasil há muito tempo, mas o avanço de redes nacionais de supermercados
estimulou no país a distribuição de caixas e pacotes de diferentes tipos de
massas, com nomes (em italiano) pitorescos para nossos padrões, com grafia de
origem: farfalle (borboletas), orecchiette (orelhas pequenas),
vermicelli (pequenas minhocas) e fusilli (parafusos). Ninguém
se queixa da presença desses vocábulos nem os considera ameaças à sobrevivência
do português.
Diria que problemas políticos e ideológicos relacionados
a palavras de origem estrangeira desaparecem quando se trata das delícias da
mesa. O estômago "fala" mais alto. É verdade que há 50 anos nem havia no Brasil
as redes de comidas rápidas americana, árabe, italiana, chinesa ou japonesa. A
globalização possibilitou a inserção de diferentes cuisines no país. O
resultado é que a alimentação ficou mais variada e, graças à criatividade dos
chefes e à engenharia de alimentos, mais saborosa. Pois temos suflês e
fricassés de legumes e verduras e frappés, mousse e
ganaches. Outro resultado é o aumento no número de palavras em
português, que exige registro de novas palavras nos dicionários. Quem não sabe a
diferença entre sashimi, e sushi, ou entre burrito, taco e nacho, precisa de
orientação.
John Robert Schmitz é professor do
Departamento de Linguística Aplicada (IEL), da Universidade Estadual de Campinas
(Unicamp)
No princípio era a fome | |
Metáforas de alimentação como gênese de expressão do
povo brasileiro Por José Paulo OliveiraOswald de Andrade definiu o brasileiro como "uma mistura de floresta com escola, um misto de dormenenêqueobichovempegá com equações". Nosso falar mole e descansado conserva, perante a comida, um respeitoso vínculo, profundo e quase umbilical. Vítima da miséria secular, a gente brasileira encontrou nas metáforas ligadas à alimentação uma forma genuína de expressar-se, de representar e recriar o mundo.Expressões culináriasLinguagem rica, banquete pra mais de mil talheres. Se vingança é prato que se come frio, o gostinho da vitória terá de ser saboreado. Desaforos não devem ser engolidos, pessoas inflexíveis e de temperamento forte são pão, pão, queijo, queijo e gente de má índole é farinha do mesmo saco. Tua batata tá assando. Perigo iminente! Farinha pouca? Meu pirão primeiro. A mais pura definição do salve-se quem puder. A situação vai melhorar? Batata: junto com as boas novas vem, no pacote, um angu de caroço. Enquanto os políticos falam abobrinhas e são tratados a pão de ló, o povo continua comendo o pão que o diabo amassou. Dá pra pagar as contas? Mamão com açúcar? Que nada... Sobreviver continua osso duro de roer. Essas e outras tantas expressões, todo brasileiro sabe. Conhecê-las faz parte de nossa educação florestal; desconhecê-las é desentender as motivações que alimentam nossa alma. Educação culinária Em um país de tanta abundância e tão pouca oportunidade para tantos, há quem acredite que a nova classe C está destinada a ficar por cima da carne seca e tirar a barriga da miséria. Nem nos causa estranheza que nossos ministros sejam fritados ou a liberação de recursos para a saúde e a educação seja eternamente cozinhada em fogo brando e mantida em banho-maria. Aliás, quem é que não sabe que tudo aqui acaba em pizza? No Brasil, fast-food e alopatia convivem na boa com a mamadeira, a canjica, os chás de erva-cidreira e erva-doce. Geleia global. Tudo bem que os americanos tenham o seu "piece of cake", designativo das coisas fáceis de obter. Houve tempo em que eles só souberam da fartura e não sentiram na carne o que é ter de descascar um abacaxi, resolver um pepino, encarar uma batata quente e enfrentar o angu de caroço que é o nosso dia a dia. Afinal, mesmo em crise, eles ainda ganham em dólar. E comem como poucos... José Paulo Oliveira é professor, consultor de comunicação e coautor, ao lado de Carlos Alberto Motta, de Como Escrever Melhor (Publifolha, 2000) |
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