quarta-feira, 10 de setembro de 2025

Rotas do vinho

A jornada pelos vinhedos revela que o vinho é, antes de tudo, uma narrativa engarrafada. Cada taça conta uma epopeia de terroir, humanidade e tradição, transformando o simples beber em uma celebração da história e da geografia. 


Escrito por WALNICE NOGUEIRA GALVÃO*

1.

Viajando por Portugal, aproveite para transpor o rio Minho, que forma a fronteira com a Espanha, na altura da Galícia. A Galícia, apesar de espanhola, é tão boa de vinho verde quanto Portugal, só mudando ligeiramente a grafia da afamada casta Alvarinho, que lá se torna Albariño.

E já que está nas paragens dê um pulinho até Santiago de Compoostela, capital da Galícia, para contemplar sua imponente catedral românico-barroca, patrimônio mundial da Unesco. Da Monção portuguesa na fronteira até lá são cerca de 100 km de carro, trem ou ônibus. Monção fica à beira do rio Minho, é uma “vila” e tem 17 mil habitantes. Você passará na estrada por muitos peregrinos com sua concha de Saint-Jaques pendurada no cajado do andarilho.

Por que Saint-Jaques? Reza a lenda que foi São Tiago/Santiago quem fundou a igreja. Caso alguém se admire do intervalo de um milênio entre a vida do apóstolo Tiago (um dos 12 de Jesus Cristo) e a data da chegada à Espanha, deixa para lá: os fiéis não se importam e passam a lenda adiante com cara de pau. Tampouco se abalam quando os filólogos insistem que a etimologia de Compostela é cemitério ou esterco, e continuam dizendo que é “Campo da Estrela”, muito mais bonito, convenhamos, que o outro…

Do lado português fica a vila de Monção, capital mundial do vinho verde. Em suas tascas oferecem-se vários com o topônimo, “Muralhas de Monção”, “Nuvens de Monção”, e assim por diante, servidos não em copo ou taça, mas em malgas, que são tigelas rasas sem pé e sem alças. É assim que os nativos bebem – imite-os.

A vila fica no alto, nas barrancas do rio Minho. Do outro lado do rio já é a Espanha (Galícia), e olhando das muralhas dá para entender a história de uma heroína local, por nome Deu-La-Deu Martins. Corriam as Guerras Fernandinas, no séc. XIV, e os espanhóis assediavam Monção, que já estava nas últimas.

Querendo enganar o inimigo e fingir que ainda havia fartura, conta-se que uma mulher assou uma quantidade enorme de pães com as poucas medidas de farinha que lhes restavam, e jogou os pães do alto da muralha para os espanhóis lá em baixo. Estes, desacorçoados por aquela resistência inflexível baseada em abundância de víveres, bateram em retirada. O ardil resultou e a guerra terminou.

Nas armas da vila vê-se uma mulher no alto de uma torre, com um pão em cada mão. E a divisa da vila reza: “Deus o deu, Deus o ha dado” – cuja corruptela deve ter resultado no nome Deu-la-Deu, ou vice-versa.

Uma rota importante e que fica para outra ocasião, é a da Provença, pátria de vinhos clássicos. Mas é difícil competir com os encantos do povoado de Chateauneuf-du-Pape. Para começar, o lindo nome, de fundas raízes históricas, pois fica ali do lado a Avignon do papado cismático que vigorou na Idade Média com uma espécie de “papa paralelo”. Depois, o fato de nomear um vinho famoso.

E finalmente, a tradição de fazer jorrar vinho Chateauneuf-du-Pape uma vez por ano, no aniversário da vila, do belo chafariz de mármore branco que fica em seu centro. É uma comuna minúscula, não passa de um arruado, de não mais que dois mil habitantes, na Provença. Mas parece saída de um conto de fadas.

Já a casta Tokaji, nativa e exclusiva da Hungria, tem linhagem que remonta aos romanos, que, afora estradas e aquedutos, deixaram seu legado plantando vinhedos por toda a Europa. Ao que consta, era o vinho preferido de Luis XIV, o Rei Sol em sua Versalhes: dizem que vem dele a definição de que o Tokaji é “o vinho dos reis e o rei dos vinhos”.

Coisa rara, não é preciso ir às planícies do interior, as psuztas, célebres pela fertilidade, para prová-lo. Elas são tão célebres que até foram também alvo de tombamento pela Unesco. Ali mesmo no centro de Budapeste, pertinho da Ópera, encontra-se uma casa de degustação dos vinhos Tokaji.

A casa oferece perto de 30 variedades da marca, indo desde o champanhe até o licor. Entre os fregueses, todos de pé pois não há mesas e cadeiras, notam-se donas de casa com sacolas de compras e pedreiros de obra em macacões respingados de cimento. Os vinhos são todos deliciosos, todos baratinhos. Esfregamos os olhos, mas continuamos acreditando que estamos no paraíso.

2.

A capital da província de Champagne é Reims, com sua espetacular catedral gótica, cantada em prosa e verso, bem como pintada de todos os jeitos (menos que a de Ruão, que Monet pintou 30 vezes). Mas esta não fica atrás em beleza, com seu monumental anjo sorridente no portal. Ali se procedia à sagração dos reis franceses, o que foi feito durante nove séculos! O que só reforça sua relevância.

Excetua-se Napoleão, que preferiu ser coroado na Catedral de Notre-Dame, em Paris, em célebre cerimônia na qual, não achando ninguém mais condigno, nem sequer o papa, coroou-se a si mesmo. O lance está devidamente documentado na imensa tela de David, hoje no Louvre.

A catedral sobreviveu, embora muito estropiada, a bombardeios sistemáticos dos nazistas na Segunda Guerra, e depois passou por vasta restauração. Felizmente os franceses cultivam um Musée de la Contrefaçon, e puderam fornecer uma réplica do anjo intacto.

Os vinhedos a perder de vista são um conforto para a vista. As principais grifes têm sedes suntuosas, imitando castelos medievais em ponto menor, com um efeito fake bem dispensável. Têm também uma loja para você fazer compras. Enquanto os adultos provam as bebidas, as crianças recebem refrigerantes da mesma cor e borbulhantes, em flutes iguaizinhas às dos adultos, mas de plástico. Muito acolhedor. Assim como é um alívio percorrer de trenzinho os subterrâneos e ficar sabendo que, só naquela casa, há 15 milhões de garrafas na reserva…. Podemos respirar aliviados.

Mas isso ainda não é o mais interessante. Ao largo das grandes marcas, há pequenos produtores, que recebem em casa. Modestas casas, modestas roupas, modesta apresentação. Mas abrem imediatamente uma garrafa, da qual lhe servem, acompanhada por um pratinho com biscoitos… champanhe, é claro.

Aí você experimenta, saboreia, negocia, barganha, etc., principalmente porque é um pequeno comprador. Mas á muito simpático. E em geral são viúvas que levam avante os trabalhos após o falecimento do marido. Só aí dá para entender porque tem tanto champanhe com “viúva” no rótulo, a começar pela mais famosa delas, a Veuve Clicquot. Outras grifes, como por exemplo a Taittinger, não indicam a viuvez no rótulo, mas sua presidente, no caso Vitalie Taittinger, é a herdeira de muitas gerações que portaram e portam o nome da família.

Obrigatória e a visita ao túmulo de Dom Perignon, criador do champanhe no convento da ordem beneditina de St.-Pierre d`Hautvilliers, em que viveu. Veja bem: ele não é o criador só do champanhe Dom Perignon, que leva seu nome e que devemos à Moët et Chandon.

O monge beneditino, que era o responsável pela adega do mosteiro, fabricava vinho e fazia experimentos, com verve de inventor e alquimista. Um dia deparou-se com a novidade da efervescência que seu vinho usual oferecia. Reza a lenda que exclamou: “Estou bebendo estrelas!”.

Logo lembramos de nosso poeta Olavo Bilac, que apenas ouvia estrelas – mas já é alguma coisa. Não se deixe de curvar e prestar homenagem ao monge, que fez e continua fazendo a alegria de tanta gente. O corte clássico combina três castas: Chardonnay, Pinot Noir e Pinho Meunier, em diferentes proporções.

E se o choampanhe ganhou nos tribunais a exclusividade do nome, já a méthode champenoise é imitada no mundo todo, com sucesso. Quem aprecia o vinho espumante está bem servido e pelo menos pode tomar cava, prosecco, vinho verde, verdicchio, e tantos outros, de boa cepa e fabricação impecável.

Cava é encontrável aos copos nas numerosas xampañerías de Barcelona, mas um pouco também pelo mundo todo, até no Brasil. Vinho típico da região do vale do Penedés, rio que passa nos arrabaldes de Barcelona, o único autêntico vem dali e é feito com a casta de uva Xairel·lo, nativa da Catalunha.

Os outros são derivações, porém de boa qualidade. Pela Espanha afora, até nas ilhas Canárias, encontram-se cavas baratinhos, e são todos bons, não precisa ir atrás de marcas famosas, escoradas na propaganda. No Brasil também já se está fabricando um bom cava, o que é uma boa notícia para os aficionados.

 

*Walnice Nogueira Galvão é professora Emérita da FFLCH da USP. Autora, entre outros livros, de Lendo e relendo (Sesc/Ouro sobre Azul). [amzn.to/3ZboOZj]

 

[Imagem: David Köhler - fonte: www.aterraeredonda.com.br]



 

Sem comentários:

Enviar um comentário