domingo, 24 de fevereiro de 2019

Sobre laranjas e bananas

O pomar de palavras do português brasileiro sempre foi produtivo à beça

Escrito por Sérgio Rodrigues
É curioso que o sentido criminal da palavra "laranja", protagonista da primeira grande crise do governo Bolsonaro, instigue tanto a imaginação de etimologistas de fim de semana, que lhe atribuem as origens mais mirabolantes.
O pomar de palavras do português brasileiro sempre foi produtivo à beça, sem que jamais precisássemos recorrer a explicações tortuosas ou excessivamente pitorescas —como as que têm circulado na imprensa sobre os laranjas e que incluem até referências à guerra do Vietnã— para dar conta de usos que cresceram no quintal. 
Pomar de laranja em Taiúva (SP) 
País mais rural que urbano até 1950, ou seja, anteontem em termos históricos, o Brasil tem em seu vocabulário uma rica salada de frutas de sentidos informais: laranjas, bananas, abacaxis, mamões, uvas.
A lógica da associação entre a acepção literal e a figurada pode ser mais ou menos evidente. Há casos em que o elo residirá em alguma anedota que foi parar no lixo da história --aquele para o qual varremos, por exemplo, o cidadão imortalizado na expressão "até aí morreu o Neves". Em outros casos a ligação será puramente expressiva, baseada numa graça que a gratuidade só acentua.
Vale recapitular: na primeira metade do século 20, "laranja" já aparecia em registros escritos na acepção hoje um tanto esquecida de "pessoa ingênua, bocó". A mesma que nas últimas décadas evoluiu para a de "indivíduo que, ingenuamente ou não, tem seu nome usado em fraudes financeiras".
O desdobramento é compreensível: os primeiros laranjas eram os típicos otários, pessoas que tinham seus nomes e CPFs envolvidos em crimes milionários à sua revelia. Mais tarde, esse sentido teve que se ampliar para dar conta de quem participa voluntariamente das fraudes em troca de algum ganho.
À parte o fato de ser recente, não há nada em todo esse processo que torne a história da palavra "laranja" marcadamente distinta da de "banana". Esta passou há muito mais tempo (inclusive em Portugal) por uma frutificação semântica na língua informal: ganhou na primeira metade do século 18 o sentido de "indivíduo covarde" e logo, por extensão, o de "pessoa fraca, sem iniciativa ou energia".
Seria difícil encontrar um cidadão brasileiro que não compreendesse de imediato o uso contido numa frase como esta: "É um banana que não consegue sequer impor sua autoridade ao próprio filho". No entanto, como e por que a palavra ganhou tal sentido? Associações com forma, consistência ou outra característica da fruta são livres.
Às vezes o elo é explícito. Em outro uso consagrado, "abacaxi" se tornou em algum momento do século passado um símbolo de trabalho difícil, problema grave ou situação intrincada. Como em "governar o Brasil é um tremendo abacaxi". A dificuldade de descascar o fruto encrespado e espinhento dispensa maiores elaborações.
O mamão é mais ambíguo. Tem há tempos a acepção pejorativa e já dicionarizada de "imbecil, palerma", mas também vem desfilando na língua das ruas o sentido mais recente de "tarefa de fácil execução, moleza", forma reduzida da expressão metafórica "mamão com açúcar". No primeiro caso, a associação entre sentido literal e sentido figurado é obscura; no segundo, claríssima.
Em qual das duas categorias devemos classificar a palavra "uva" quando ela tem a acepção —um tanto fora de moda, é verdade— que o dicionário "Houaiss" registra como "mulher muito bonita"? Desde quando uvas são modelos de beleza?



[Foto: Edson Silva/Folhapress – fonte: www.folha.com.br]

Sem comentários:

Enviar um comentário