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Escrito por ANA GERSCHENFELD  
 
Se aprendeu na
    escola que os judeus e os mouros foram expulsos da Península Ibérica pela
    Inquisição, desengane-se. A população actual da Península Ibérica, e de
    Portugal em especial, revela uma enorme mestiçagem com estes dois povos,
    promovida precisamente... pela intolerância religiosa. Os genes contam a
    história.  
 
Não é raro
    ouvir um português dizer, falando com algum orgulho das suas hipotéticas
    mas exóticas raízes, que "tem um avô judeu" - e isso, apesar de
    não haver, oficialmente, muitos judeus a residir em Portugal desde há uns
    500 anos. Mas a acreditar num estudo genético dos homens da Península
    Ibérica agora publicado, esta afirmação, que até aqui era mais uma boutade
    do que outra coisa, revela-se muito mais certeira do que se pensava. O
    estudo sugere que o tetra-tetra-tetra-avô de muitos portugueses terá sido
    um judeu sefardita - ou um muçulmano do norte de África - que, para escapar
    à morte e à deportação, à "limpeza étnica", para usar um termo
    moderno, promovida pela Inquisição, se terá convertido ao cristianismo,
    forçado ou por vontade própria. Fundiu-se na população geral e abandonou a
    sua fé e cultura originais, para depois acabar por esquecê-las. O estudo,
    ontem publicado on-line no American Journal of Human Genetics, tem por
    título O Legado Genético da Diversidade Religiosa e da Intolerância:
    Linhagens paternas dos cristãos, judeus e muçulmanos na Península Ibérica e
    abrange a totalidade do que são hoje Espanha, Portugal e as ilhas Baleares.
    Mostra que a mestiçagem dos povos ibéricos ancestrais com os judeus e com
    populações do Magrebe deixou marcas detectáveis nos genes das populações
    ibéricas actuais. E, neste contexto, Portugal surge como o campeão: é por
    cá, especialmente no sul do país, que a presença de genes "não
    ibéricos" atinge os seus máximos - máximos que se revelam, aliás,
    inesperadamente elevados. 
 
Em linhas
    gerais, os judeus chegaram à Península Ibérica no início da era cristã, no
    tempo do Império Romano, vindos do Médio Oriente, e permaneceram até ao
    final do século XV: esses judeus são os chamados judeus sefarditas
    (Sefarad, em hebreu, significa Espanha). Os povos berberes do norte de
    África, por seu lado, vieram para a península no século VIII e permaneceram
    até ao século XV-XVI. Tanto os sefarditas como os magrebinos foram expulsos
    ou obrigados a converter-se ao cristianismo pela Inquisição, num processo
    que na realidade demorou séculos e foi marcado por várias ondas de
    intolerância religiosa. 
 
A equipa
    internacional de cientistas que fez o estudo - e que inclui investigadores portugueses
    - analisou a genealogia genética de mais de mil homens da Península Ibérica
    através da evolução do seu cromossoma Y (o cromossoma do sexo masculino).
    Como este cromossoma é   transmitido, ao longo das gerações, de
    pai para filho, é muito útil nos estudos deste tipo (embora só nos homens,
    claro). O ADN do cromossoma vai sofrendo mutações ao longo do tempo e essas
    mutações constituem "marcadores" que permitem reconstituir as
    linhagens paternas. Dois tipos de marcadores no cromossoma Y serviram neste
    estudo. Os primeiros, ditos STR (short tandem repeats), são feitos da
    repetição de um mesmo pequeno fragmento de ADN. São alterações genéticas
    que surgem com muita frequência aquando da transmissão do cromossoma Y de
    pai para filho, e como a taxa dessas mutações, que é relativamente
    constante, é conhecida, funcionam como um "relógio" molecular.
    Como uma "escala do tempo", disse ao P2 João Lavinha, responsável
    pela unidade de investigação do Departamento de Genética do Instituto de Saúde
    Ricardo Jorge, em Lisboa - e um dos coautores do estudo: "Permitem
    saber há quantos anos aqueles Y cá estão." O segundo tipo de
    marcadores, ditos binários, são mutações muito menos frequentes que
    consistem quer em alterações pontuais do ADN (numa só "letra"
    desta imensa molécula), quer em fragmentos que são apagados ou
    acrescentados. "São detalhes na sequência [neste caso, do cromossoma
    Y] que, pela sua presença ou ausência, informam sobre a origem geográfica
    desse Y", acrescenta João Lavinha. "No estudo, utilizámos 28 marcadores
    binários." 
 
Populações parentais 
 
Os cientistas,
    liderados por Mark Jobling, da Universidade de Leicester, no Reino Unido,
    partiram de três populações ancestrais ou "parentais" de
    referência: a dos "ibéricos" (constituída pelos cromossomas Y de
    116 bascos, considerados como os mais próximos parentes das populações
    ibéricas mais antigas); a dos magrebinos (os cromossomas Y de 361 homens do
    Sara Ocidental, Marrocos, Argélia, Tunísia); e a dos judeus sefarditas (174
    homens que se autodesignam como tal, entre os quais 16 de Belmonte e o
    resto da Bulgária, Grécia, Espanha, Turquia e da ilha de Djerba).  
 
Em cada uma
    destas populações, existe uma combinação predominante de marcadores
    binários - isto é, de presenças/ausências ou alterações pontuais no ADN -,
    o que faz com que seja fácil "diagnosticar" a ascendência de um
    cromossoma Y escolhido ao acaso. "Há quatro tipos de combinações de
    marcadores binários do cromossoma Y com valor de diagnóstico",
    confirma João Lavinha. "O resto é ruído." Desses quatro, três são
    mesmo característicos de apenas uma das três populações consideradas, pois
    não existem em nenhuma das duas outras. Têm nomes de código que parecem
    sopas de letras: a dos "ibéricos" chama-se R1b3, a dos magrebinos
    E3b2 e a dos judeus J2. São estas combinações de marcadores que serviram de
    base para a comparação com as populações actuais, permitindo determinar a
    contribuição de cada um dos três "antepassados" aos descendentes
    de hoje em dia. 
 
Quem foram os
    "descendentes" utilizados no estudo? Foram 1140 homens da
    Península Ibérica e das ilhas Baleares - ou melhor, o seu cromossoma Y. Em
    Portugal, a amostra consistia em 62 cromossomas Y de homens do
    "norte" (definido, para o efeito, como a região a norte do
    sistema montanhoso Montejunto-Estrela) e 78 de homens do "sul",
    explica João Lavinha. "Considerámos que esse sistema montanhoso é uma
    barreira geográfica que terá feito com que as respectivas populações se
    cruzassem menos", frisa. O material genético oriundo de Portugal fora
    recolhido em inícios dos anos 90 e o critério de selecção para o actual
    estudo foi que os homens tivessem um avô paterno nascido na mesma região
    que eles (norte/sul). "Isso significa que estas linhagens estão no
    mesmo sítio desde o ano 1900", faz notar João Lavinha.  
 
A última fase
    consistiu em calcular as contribuições das três populações parentais ao
    cromossoma Y dos homens actuais. "Essas proporções são uma medida da
    mestiçagem", diz ainda o geneticista. 
 
Conclusão: em
    média, os homens ibéricos actuais tem 20 por cento de ascendência judia
    sefardita e 11 por cento de ascendência magrebina. E para Portugal, em
    particular, os números são impressionantes. Os cromossomas Y analisados
    apresentam, em média, 15 por cento de ascendência norte-africana no sul e
    10 por cento no norte. "É mais do que se esperaria", reflecte
    João Lavinha. Mas é em relação aos judeus sefarditas que as proporções são
    "enormes", salienta: em média, 35 por cento dos homens no sul têm
    genes sefarditas e, no norte, 25 por cento. "Os cristãos-novos são uma
    realidade", reflecte João Lavinha. "Muita gente não fugiu nem foi
    expulsa; misturou-se. Nós não temos essa noção, mas eles sobreviveram à
    intolerância religiosa."  | 
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