Escrito por Sérgio Rodrigues
Boa
notícia no mundo da língua brasileira: a expressão biônica "risco de
morte", que há cerca de 20 anos começou a se impor às cotoveladas no
discurso dos meios de comunicação, sofreu um violento revés. Talvez não corra
risco de vida, mas está no hospital.
Na
última quinta-feira (9), depois que publiquei aqui um texto sobre os
"podólatras da letra", a direção de jornalismo da TV Globo soltou uma
circular vetando em toda a rede o uso da locução, que chamou acertadamente de
"modismo".
Eu
sei que isso não vai resolver os problemas do Brasil. A notícia é boa para a
cultura do país porque representa uma vitória da língua natural, aquela que as
pessoas de fato falam, e uma derrota de certa mentalidade prescritiva que,
mesmo bem intencionada, comete o pecado de inventar "erros" onde eles
não existem.
Basta
pensar na reputação que o português tem para grande parte dos estudantes e da
população em geral –a de língua dificílima e cheia de pegadinhas– para entender
o potencial nocivo da caça ao equívoco imaginário. "Seus tataravós falavam
errado, seus bisavós e avós e pais também, preste atenção!"
Por
ser emblemática, a história de "risco de morte" merece uma
recapitulação. É preciso deixar claro que o problema da expressão não é estar
"errada". Seu problema é que, de uso minoritário ate então, foi
vendida a multidões de falantes ao preço da criminalização de uma locução
consagrada, familiar e tão popular quanto elegante.
Foi
em fins do século passado que estudiosos apegados demais ao pé da letra
transformaram a malhação de "risco de vida" –que até Machado de Assis
usou– em cavalo de batalha. O jornalismo brasileiro, infelizmente, montou nele
e saiu a galope.
A
Globo não inventou o modismo, embora possa ser considerada sua maior
propagadora. Introduzida na cultura da grande imprensa por consultores de
português, a ideia de que "risco de vida" era um contrassenso chegou
a ser acolhida também nesta Folha –que, no entanto, livrou-se dela faz tempo.
"Ninguém
corre o risco de viver", dizia-se. Era um equívoco. A análise em que se
baseava obscurecia algo compreendido até então por todos os falantes, inclusive
os analfabetos: que risco de vida quer dizer risco para a vida, isto é, risco
de perder a vida.
Enxergar
aí uma agressão à lógica requer um tipo bem carrancudo de literalismo. É mais
ou menos como dizer que o "quarto de visitas" deveria ser chamado de
"quarto para visitas", uma vez que elas nunca terão a posse do
cômodo.
A
primeira voz que vi se levantar contra isso, no início do século, foi a do
linguista Sírio Possenti. No campo conservador, o jornalista Marcos de Castro
incluiu um verbete em reedição de seu livro "A Imprensa e o Caos na
Ortografia" para engrossar o coro. A resistência a "risco de
morte" foi uma obra coletiva.
Não
que a locução mereça o anátema que seus defensores tentaram impor a "risco
de vida". As duas são gramaticais e fazem sentido. Uma, preferida por
gerações de brasileiros, refere-se ao perigo que corre a vida; a outra fala do
perigo de que a morte vença. Dizem basicamente a mesma coisa.
Por
que, então, comemorar o declínio da expressão "risco de morte"?
Porque ela não soube brincar. A língua que as pessoas falam na vida real merece
respeito.
[Fonte:
www.folha.com.br]
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