A intenção é uma só: mandar aos trabalhadores o recado de que precisam conhecer o seu lugar e deixar de almejar o poder
Por Roberto Amaral
Apesar de seu significado, de suas consequências e de sua brutalidade política, a tentativa de destruição eleitoral de Luiz Inácio Lula da Silva,
em curso, não é a ameaça mais grave que paira sobre o futuro imediato
das forças populares, mesmo porque a vida política não se reduz ao
processo eleitoral e porque não existem, nesse âmbito, derrotas
definitivas, nem absolutas. Basta ouvir a história.
O movimento reacionário que nos governa hoje
pensando em um projeto de poder de muitos anos –à margem dos mecanismos
da democracia representativa e da soberania popular – volta suas
poderosas baterias (políticas, midiáticas, policiais, judiciais) apenas
incidentalmente, ou taticamente, para a figura do ex-presidente e
eventual candidato à Presidência, pois seu alvo verdadeiro, de vida e
morte, é o símbolo Lula, com toda a sua profunda carga emocional.
Simbologia que não se reproduz senão a espaços largos de anos e em condições objetivas e subjetivas que raramente se repetem.
O símbolo Lula é um produto social; como construção coletiva, não
pertence a si mesmo. É instrumento do imaginário: é, hoje, a leitura que
dele fazem seus contemporâneos. A imagem de Lula caminha para além dos
limites de país, simbolizando para o mundo afirmação das possibilidades
dos trabalhadores.
O processo social não conhece a autogênese. Lula, tanto quanto o partido que fundou, o Partido dos Trabalhadores (PT),
são (independentemente um e outro de seus muitos erros) o fruto da
acumulação das lutas sociais, são o resultado das tantas batalhas em
defesa da democracia, dos conflitos sociais e de classe, são a
condensação de mais de um século de conquistas sindicais reunindo, numa
só herança, desde os anarquistas do início do século passado até o
varguismo que a socialdemocracia de direita, da UDN de Carlos Lacerda ao tucanato de Fernando Henrique Cardoso, intenta destruir.
Ambos, Lula e o PT, são um só fruto dos avanços políticos mais
consequentes do fim da ditadura militar, direitos consagrados pela
Constituição de 1988 que ainda ambos, Lula e o PT, equivocadamente, se
recusaram a assinar.
O ‘risco Lula’ não se reduz ao seu notório potencial eleitoral a
ameaçar os sonhos continuístas do assalto neoliberal, até porque outras
alternativas haverão de ser construídas; o perigo, a ameaça, residem
principalmente – e nisso está sua maior gravidade – no que o líder
popular representa e simboliza para as grandes massas como exemplo de
afirmação histórica da classe trabalhadora.
A destruição política de Lula, ainda que necessária para o projeto de
regressão ao passado, é perseguida pelos algozes de hoje
(muitos deles aliados de ontem) como instrumento de destruição da
expectativa, prelibada, de os trabalhadores conquistarem o poder e o
exercerem diretamente, isto é, sem a clássica e corriqueira delegação a
um representante da classe dominante.
No caso concreto, duas imagens precisam ser derruídas: a do operário
transformado em político vitorioso e a do Lula presidente, isto é, de um
governante de raro sucesso. Esta é a tarefa urgente, mas não é
tudo – pois o projeto da classe dominante é quebrar as
veleidades autoafirmativas da classe trabalhadora. Trocando em miúdos,
os trabalhadores precisam conhecer o seu lugar. Este é o recado que nos
mandam.
Certa feita, ainda presidente da República, Lula se autoqualificou
pela negativa, isto é, como ‘não de esquerda’. Ignorava ele que
personagem histórico não ocupa, necessariamente, o papel que se escolhe,
mas aquele que, consoante suas circunstâncias e as contingências
históricas, lhe é dado desempenhar num determinado momento.
Assim, independentemente de sua vontade e da vontade de seus
adversários de classe, Lula, hoje, não apenas atua no campo da esquerda
como é, a um tempo, o mais importante líder desse segmento político e o
mais importante líder popular em atuação. E é isto o que conta para a
crônica de sua condenação.
Muitas vezes, na política, e estamos em face de um caso concreto, o
personagem histórico se aparta de sua trajetória pessoal, linear, e
passa a viver uma nova vida no imaginário popular: ele é ou passa a ser o
que simboliza perante as massas. Tiradentes é o ‘protomártir da
Independência’, a princesa Isabel ficou nos manuais da história do
Brasil como ‘a redentora’, Deodoro como ‘o proclamador da República’.
Getúlio Vargas
superou o papel de chefe da revolução de 30 ou de ditador para ser
recepcionado pela história como o pai da legislação trabalhista, o pai dos pobres e herói nacionalista. Assim
foi chorado pelas massas órfãs, ensandecidas, desarvoradas com o choque
de seu suicídio. Os símbolos são a argamassa da política.
Voltando: o que Lula representa hoje, além de uma razoável
expectativa de poder? No plano simbólico ele nos diz, ditando lição
subversiva, que o homem do povo pode chegar à presidência da República
sem precisar atravessar a margem do rio onde só se banham os donos do
poder; subvertendo a ‘ordem natural das coisas’, ele nos diz que o povo
pode pretender escrever sua própria história.
Isto é intolerável em sociedade que, desde sua origem – da oligarquia
rural aos rentistas do capitalismo moderno –, se organizou segundo a
disjuntiva casa-grande e senzala, células incomunicantes,
cujos personagens têm, 'por natural', papéis definidos e próprios que
não se podem confundir: de um lado os mandantes, de outro, os mandados,
de um lado os senhores de direitos, de outro os portadores de deveres e
obrigações. De um lado o capital, de outro o trabalho, seu servidor. A
díade imutável de nossa monótona história.
Pela primeira vez na República um trabalhador, operário de macacão e
mãos sujas de graxa, se fez líder trabalhista e presidente. Não se trata
mais de um quadro da classe dominante operando a mediação entre capital
e trabalho, como Getúlio, como Jango conduzindo as massas e dialogando
em seu nome com a classe dominante, como um dos seus. Com Lula as massas
se expressam, pela vez primeira, sem a intermediação do populismo. E
isso não é pouco.
Pela primeira vez os trabalhadores, majoritariamente, se identificam
com um partido criado e liderado por um dos seus. Não são mais pingentes
de partidos da estrutura clássica que generosamente abrem espaços para a
manifestação dos quadros da classe média, que neles podem atuar
defendendo os interesses dos dominados: nem é mais o PTB, nem são mais
os Arraes ou os Brizolas que falam pelos trabalhadores.
Nem são mais os comunistas do capitão Prestes, ou os intelectuais de
esquerda que traíram sua origem de classe para se aliar aos
trabalhadores, às grandes massas dos excluídos, aos deserdados da terra,
para lembrar Frantz Fanon.
E isso não é pouco.
Nesse mundo dividido entre desenvolvidos e subdesenvolvidos, entre
centro e periferia, entre mandantes e mandados, não cabe aos de baixo
levantar a cabeça, pensar em riqueza e desenvolvimento, senão tão-só
assistir aos banquetes dos poderosos e sonhar que sempre lhes sobrarão
migalhas.
Nesse mundo conflagrado, no mundo da recessão, no reino do neoliberalismo,
neste país conformado com a injustiça social e praticante das
desigualdades, de renda e de toda ordem, a ascensão das massas, a
revelação de sua capacidade organizativa e a construção de uma liderança
própria constituem, aos olhos da casa-grande, péssimo e perigoso
exemplo. Precedente que os donos do poder não querem ver repetido, e
para evitá-lo tudo farão. Sem medir meios.
Assim se explica o empenho em que se aplica a oligarquia governante
visando a destruir essa liderança que fugiu ao seu controle, no intento
de impedir que outras, tão ousadas, lhes sigam as pegadas e o mau
exemplo. É preciso, pois, desconstituir a boa memória de seu governo e
destruir sua honra.
É preciso destruir o líder e ao mesmo tempo, desestimulando-a,
vacinando-a contra ‘aventuras’ futuras, quebrar o ânimo da classe
trabalhadora. Nesta tarefa todos estão empenhados, para dizer a essas
massas, que Lula não passa de um mito, que seu partido não passa de uma
fraude a ser exorcizada, que essa experiência foi na verdade um rotundo
fracasso, uma mentira, uma lenda.
A classe trabalhadora, mais uma vez vencida, diz-nos a oligarquia dos
proprietários, terminará por aprender uma velha lição: não está em suas
posses conduzir as próprias rédeas. Volte, pois, para o chão de
fábrica.
Enfim, a reação autoritária
pretende ensinar à classe trabalhadora que seu papel é subalterno ao do
capital e que ela tem de se conformar em ser caudatária da classe
dominante.
Resta-nos aceitar passivamente a depredação, ou resistir com toda a
veemência – e não apenas, claro está, em nome da integridade física e
moral do indivíduo Lula; menos ainda para livrá-lo (e seu partido) do
julgamento da história a que todas as lideranças políticas devem, ao fim
e ao cabo, estar submetidas. Mas para preservar um patrimônio que nos
ajudará a atravessar a noite da restauração conservadora, brutal,
impiedosa, despida de todo escrúpulo, e já iniciada.
O símbolo é um patrimônio coletivo.
[Foto: Ricardo Stuckert / Instituto Lula - fonte: www.cartacapital.com.br]
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