Por JOCA
REINERS TERRON
"Viva a Música!" é desses raros instantes em
que a realidade invade a literatura, arrastando a ficção pelo colarinho a um
mundo desconhecido. A música, desde o título, não é pouca no romance de Andrés
Caicedo: do ritmo oral que turbina a voz da adolescente María del Carmen à
festa infinita de Cáli, cuja trilha sonora não passa de desespero e violência
descontrolada rumo ao fim da noite.
É providencial ler em voz alta
este "tour de force" de 1977 para notar que o colombiano nunca
escreveu de boca fechada. Evidência disso é a fala incessante da narradora,
lourinha-belzebu que prima pelas marcas da juventude dos anos 70: ódio às
convenções familiares, prática sexual pré-Aids (promíscua até dizer chega mais)
e abuso da cocaína envolvida.
Não que tais coisas sejam
exclusivas do período, mas Caicedo as trata com a crença de que o consumo de
drogas carrega qualquer sentido libertário. Eram tempos de formação de cartéis
e da ascensão de Pablo Escobar, afinal, além da derrocada do espírito da década
anterior. No romance, a droga representa oposição das mais puras, enquanto hoje
está próxima da situação, usada politicamente pelas Farc e estatizada em outras
partes do globo.
Rebeldes mesmo só a salsa e a
desfaçatez feminista da bailante protagonista e de algumas personagens
secundárias, bem à vontade em ambientes tão machistas quanto as baladas ou as
gangues.
Ao som das
"pachangas" de Richie Ray e Bobby Cruz, por exemplo, a personagem
Mariângela diz a María del Carmen: "Os homens são uns tontos. Você pode
manejar melhor do que eles aquele pintinho que eles te enfiam com tanto
mistério".
Pedra angular da ficção
hispano-americana recente, influência de figuraças do século 21 como o
argentino Washington Cucurto e seu realismo "atolondrado"
(descuidado), "Viva a Música!" prova que a noite, "acúmulo de
substâncias negras fuliginosas na atmosfera" (como disse dr. De Selby,
criação do irlandês Flann O'Brian), é também soma desesperada de alegrias que
implodem na mais incontornável tristeza.
JOCA REINERS TERRON é
escritor, autor de "A Tristeza Extraordinária do Leopardo-das-Neves"
(Companhia das Letras), entre outros.
VIVA A MÚSICA!
AUTOR Andrés Caicedo
TRADUÇÃO Luis Reyes Gil
EDITORA Rádio Londres
QUANTO R$ 29,90 (222
págs.)
AVALIAÇÃO muito bom
[Fonte: www.folha.com.br]
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