Sim, o jogo já foi, a estrepitosa goleada ainda arde, a
incredulidade continua estampada na face de muita gente. No rádio e na TV, em
artigos publicados em jornais e sites, em comentários nas "redes
sociais" (quanta bobagem, meu Deus!) etc., ainda se tenta explicar a
histórica hecatombe.
Em muitos desses
pronunciamentos, li as palavras "acintoso" e
"acintosamente", às vezes mal grafadas (com "ss" ou
"sc"). Cito um exemplo: "O interessante é que ninguém do ramo
esportivo disse que o Brasil iria perder acintosamente se jogar da forma que
jogou". Além da equivocada correlação verbal ("iria perder" não
combina com "se jogar"), o trecho contém a forma "assintosamente",
que, além de mal grafada, constitui caso de impropriedade vocabular.
E o que é "impropriedade
vocabular"? Vejamos isso com um exemplo concreto: "Seu projeto
político vem de encontro aos meus interesses, por isso vou votar nele". Só
faltou a assinatura da mensagem: "Masoquista".
Só quem gosta de sofrer é
capaz de votar em alguém que apresente projeto que vá "de encontro"
aos seus interesses. "De encontro a" indica oposição, desacordo,
colisão, por isso o seu uso é impróprio nesse caso. A expressão apropriada é
"ao encontro de" ("Seu projeto político vem ao encontro dos meus
interesses, por isso vou votar nele"). "De encontro a" caberia
se houvesse um "não" junto à locução verbal "vou votar"
("Seu projeto político vem de encontro aos meus interesses, por isso não
vou votar nele").
O uso de "onde" como
verdadeiro cola-tudo é algo que talvez vá além da impropriedade vocabular e
chegue ao plano da morfossintaxe, como se vê em "A derrota para a Alemanha
deixou frustrados e irados muitos torcedores, onde ocorreram vários atos de
vandalismo". O emissor queria dizer que a derrota deixou frustrados e
irados muitos torcedores e que isso (a frustração e a ira) foi a causa de vários
atos de vandalismo.
Como esse emissor relacionou os fatos? Com a palavra "onde",
impropriamente empregada com o sentido de "razão pela qual"
("...deixou frustrados e irados muitos torcedores, razão pela qual
ocorreram ...").
Outro conhecido exemplo de
impropriedade vocabular consiste em empregar a palavra "pródigo" com
o falso sentido de "bom", "arrependido". O "filho
pródigo" não volta para casa porque é bom ou porque se arrepende. O
"filho pródigo" volta justamente porque é "pródigo", ou
seja, "esbanjador", "gastador". Como fica sem um tostão, o
jeito é voltar para casa (para a casa dos pais, no caso).
Voltemos ao título desta coluna.
Será que a derrota foi "acintosa", que perdemos
"acintosamente"? Sobre "acintoso" o "Houaiss" diz
isto: "1. em que há ou envolve acinte; 2. mal-intencionado; malévolo; 3.
que causa aborrecimentos; apoquentador, teimoso, pertinaz". O
"Aulete" define "acinte" como "ação, gesto, fala,
texto etc. intencionalmente feitos com o objetivo de ofender, provocar ou
contrariar alguém, PROVOCAÇÃO". O dicionário "Priberam"
(português) diz que "acinte" é "modo de fazer propositadamente o
que pode ser molesto ou desagradável a outrem".
Parece que com "derrota
acintosa" ou "perdeu acintosamente" as pessoas não queriam dizer
que o Brasil perdeu intencionalmente. Creio que queriam dizer que a derrota foi
escancarada, sem dar margem a nenhuma contestação ou sabe-se lá o quê.
Bem, se não foi acintosa, a
derrota foi dura, inquestionável, e deveria servir de lição. Servirá? Lembro o texto de 12/6 ("Coração do Mundo"), no qual
comentei a nossa incapacidade de lidar com a derrota e/ou de admitir a sua
possibilidade. Vale a pena reler o trecho de Drummond que citei naquela coluna.
Também vale a pena refletir sobre a frase estampada no ônibus da seleção. Quem
ganha na véspera quase nunca vence no verdadeiro dia do embate. É isso.
[Fonte: www.folha.com.br]

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