segunda-feira, 13 de julho de 2020

Vila do sossego




Escrito por Eduardo Affonso

Alguém sugeriu - e eu encampei - a ideia de um condomínio para pessoas que queiram viver em paz.  Uma comunidade de ermitões, por assim dizer (pode parecer um paradoxo, mas a vida seria muito sem graça sem uns despropósitos aqui, uns oximoros acolá).

Dois lotes já estão reservados, um para mim e outro para a Chica da Silva. Por sermos os primeiros, teremos a prerrogativa de escolher. Ela deve ficar com o lote A; eu, para manter o distanciamento social, com o Z.  Como o loteamento é circular, acabaremos vizinhos de porta, que é como estava desde sempre destinado a ser.

Nosso empreendimento oferecerá uma fabulosa infraestrutura aos futuros moradores. NÃO terá quadras de esporte, NÃO terá piscina, NÃO terá cozinha gurmê. Nada de salão de festas, pleigráunde ou churrasqueira. Terá ar puro, silêncio e mato. Afinal, é um condomínio para pessoas de bom gosto, gente de fino trato.

As ruas – ou melhor, alamedas – terão árvores frutíferas, garantindo o café da manhã. Aqui e ali - porque a gente também come com os olhos - um ipê, uma quaresmeira, um flamboiã.
A taxa condominial será paga em serviços. Chica se dispõe a fazer faxina, eu me habilito a passear cachorro. Os candidatos aos lotes remanescentes não precisarão apresentar comprovante de renda, mas declaração de habilidades. Não haverá restrições de sexo, gênero, orientação, ideologia ou idade.

Tampouco será preciso nenhum talento excepcional, nem dotes paranormais ou superpoderes. Mas passar roupa será tão inútil quanto ser amolador de colheres. Ser cozinheiro de mão cheia vale mais que saber, como eu, descongelar comida pronta. Lavar roupa à moda antiga, com anil e quarador, contará mais que o saldo em conta.  

Os moradores poderão conversar com plantas e os animais, sem medo de serem vistos como malucos Até porque um pouco de maluquice é uma questão de higiene. Pede-se apenas que não falem muito alto nem entrem em tretas com as maritacas (como costuma fazer o Novaes, pretendente ao lote N).

O silêncio será permitido antes e depois das 22. Pensando bem, durante também, para não deixar brecha jurídica (vai que o Helinho, candidato ao lote H, resolva se mudar pra lá e venha com chicana para aprontar uma das suas).

O lote G é do Gomide, desde que não descuide do isolamento acústico, mantenha a adega liberada e tenha sempre alguma opção vegana no cardápio (pelo menos umas 20).  E, claro, se comprometa a terminar os saraus antes das 6 horas (do dia seguinte).

A Ana Zinger –que abarca todo o alfabeto – pode escolher o lote que quiser. E também como quer pagar a taxa do condomínio - se em aula de canto, de fotografia ou dividindo uma cerveja (duas, três, quatro...) ao cair do dia.

Com os lotes A e G já tomados, o André Gabeh poderá ficar com o C, de Carvalho – árvore à cuja sombra há de escrever, desenhar e cantar para que a gente o aplauda. E, sim, como não?, pode trazer dona Alda.

Como o lote N já tem dono, a Yara terá preferência para o Y, e o compromisso de cultivar ali uma nogueira (a quem chamaremos, com carinho, de Sylvinho).  Aninha Franco terá poderes plenipotenciários para estabelecer no lote F uma embaixada da República do Pelourinho.  Márcia Valle, seu ateliê de costura no lote V. A parceira Dina Tavares, para facilitar as parcerias, há de ocupar o D.

A Laïs pode ocupar o lote L, ali ao lado da Praça Claudinha Telles, para as oficinas de roteiro. A Cristiana Beltrão já tem alvará para uma filial do Bazzar no lote B, e não há de faltar candidato a aprendiz de cozinheiro.

O R é da Maria Roberto – ninguém ali precisará de contadora, mas, para o caso de falta de inspiração, é sempre bom ter uma musa por perto. 

Se as regras para o empreendimento estiverem muito complicadas, depois a gente simplifica. Mas algo me diz que tem tudo pra dar certo. Não concorda, Chica?



[Fonte: www.eduardoaffonso.com]

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