Somos condenados ao atraso
porque confiar nos outros é perigoso no Brasil
Escrito por Contardo Calligaris
Numa das primeiras aulas do curso de paraquedismo, o instrutor
mostrou como se dobra um paraquedas. Se você errar, o paraquedas não abrirá
direito.
O
instrutor acrescentou que, no primeiro pulo, cada um de nós (éramos 15) usaria
um paraquedas dobrado por outro, não por ele mesmo.
Era
uma pegadinha, mas houve uma longa troca de olhares, tensa e silenciosa, em que
tentávamos entender se os outros eram "confiáveis" (e nos
perguntávamos: o que eles veem? Será que me acham confiável?).
Nosso instrutor era um sargento paraquedista do Exército suíço. Ele queria instilar na nossa turma de estudantes universitários o nível de cooperação e confiança recíproca que é o padrão de um Exército.
Se estamos no mesmo pelotão, eu preciso confiar que meu
camarada de sentinela das 2h às 4h não vai dormir. Sem isso, eu não poderei
descansar e estar pronto para tomar o lugar dele às 4h, no turno seguinte.
Nas
caçadas do domingo, na minha adolescência, sempre eram grupos de três que
entravam num campo de milho ainda não cortado, atrás de faisões. Com os cães na
frente, os três caçadores avançavam sem poder enxergar onde estavam exatamente
os outros. Mas nunca duvidei: ninguém atiraria numa ave antes de ela levantar
voo bem alto.
Esses
três exemplos apresentam grupos com um coeficiente alto de cooperação e
confiança. Qual seria o exemplo oposto?
Francis Fukuyama,
cientista político, publicou o famoso (como de costume, mais discutido do que
lido) "O Fim da
História e o Último Homem", em 1992 (Rocco). Três anos depois,
veio "Confiança - As Virtudes Sociais e a Criação da Prosperidade"
(Rocco), no qual Fukuyama analisa o impacto dos hábitos morais compartilhados
sobre a prosperidade de uma sociedade.
A
confiança é um dos fatores cruciais que fazem que uma sociedade seja próspera
ou não.
Fukuyama
define a confiança assim: uma expectativa compartilhada de que o comportamento
dos outros será honesto e cooperativo —e isso, claro,
fora do quadro familiar (os hábitos morais só têm interesse se funcionarem fora
da família e sem intervenção do governo).
É
fácil imaginar porque as sociedades com alto nível de confiança seriam mais
prósperas. Assim como é fácil imaginar como a falta de confiança recíproca
condena uma sociedade (o que sobrar dela sem confiança recíproca) à estagnação
na pobreza.
Veja
só. Você mora no último andar. Um dia, chove na sua casa, pelo teto. O síndico,
solícito, chama uma empresa, a qual, em tese, faz o necessário. Você confia.
Alguns
meses depois, num temporal, chove novamente na sua casa. O empreiteiro
reaparece, diz que verificou as calhas etc. e vai embora garantindo o
resultado. Você confia.
Volta
a pingar água. O empreiteiro é convocado, comenta que a chuva foi excepcional e
garante que, desta vez, está resolvido. Você não confia mais...
O
serviço acabará, enfim, com outro empreiteiro, que saberá o que fazer e,
monitorado, usará os materiais certos, que são levemente mais caros.
Essa
pequena história só é engraçada porque ela não tem vítimas. Mas ela tem custos:
seu custo social não é apenas o tempo desperdiçado por todos (zelador, síndico,
empreiteiro, mão de obra, funcionários etc.), mas a própria deterioração da
confiança (de todos) na competência, na honestidade e na eficiência do
trabalho.
Logo
antes do Painel da GloboNews de sábado passado, tomei
um café com José Adércio
Leite Sampaio, o procurador que coordena as forças-tarefas dos desastres do Rio
Doce (Mariana) e de Brumadinho.
Perguntei
se ele atribuía as mortes de Brumadinho à incompetência ou à negligência. Ele
me respondeu que, no começo, ele tinha dado uma chance à ideia de que fosse um
acidente. Rapidamente teve que levantar a hipótese da incompetência, logo a da
negligência e, enfim, rendeu-se às provas de que a catástrofe era fruto de uma
fraude.
Mariana,
Brumadinho, o CT do Flamengo,
a boate Kiss,
os desmoronamentos
da chuva no Rio, para uma amiga, são eventos que anunciam o fim do
mundo e provam que, por alguma culpa, somos desafetos de Deus. Para mim, esses
eventos só acumulam razões para cultivar a desconfiança social.
Podemos
mitigar os riscos pessoais: por exemplo, para quem pode,
não viver encostado numa barragem ou no morro do Vidigal. Mas, como comunidade, somos condenados ao atraso porque aqui, no país
em que vivemos, confiar nos outros é perigoso.
[Ilustração: Mariza Dias Costa/Folhapress
– fonte: www.folha.com.br]
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