No último domingo, na Câmara Federal, foram tantas as referências
a Deus que me lembrei de "A Igreja do Diabo", obra-prima de Machado
de Assis. Publicado há 132 anos, o texto, intemporal, assim começa: "Conta
um velho manuscrito beneditino que o Diabo, em certo dia, teve a ideia de
fundar uma igreja. Embora os seus lucros fossem contínuos e grandes, sentia-se
humilhado com o papel avulso que exercia desde séculos. (...) Vivia (...) dos
remanescentes divinos, dos descuidos e obséquios humanos. Nada fixo, nada
regular. Por que não teria ele a sua igreja?".
Em seguida, o Diabo, agora em primeira pessoa ("Terei a minha
missa, com vinho e pão à farta..."), termina a sua lucubração lembrando-se
de "ir ter com Deus para comunicar-lhe a ideia, e desafiá-lo".
Um parêntese: há muito tempo a escola não ensina as variedades clássicas
da língua, o que pode fazer muita gente perder detalhes fundamentais para a
compreensão dessas obras. Em "A Igreja do Diabo", é fundamental
perceber, por exemplo, que o Diabo dá a Deus a segunda do plural
("vós"), mas recebe dele a segunda do singular ("tu"), o
que deixa clara a hierarquia entre Deus e o Diabo.
Essa percepção muitas vezes exige conhecimento de flexões verbais
que não fazem parte da linguagem hodierna, o que não as torna indignas de
conhecimento e estudo.
"Explica-te", diz Deus ao Diabo, que assim responde:
"Senhor, (...) permiti que vos diga: recolhei primeiro esse bom velho;
dai-lhe o melhor lugar, mandai...". Em "explica-te", temos a
segunda do singular ("tu") do imperativo afirmativo clássico, que resulta
do corte do "s" final da respectiva forma do presente do indicativo;
em "permiti", "recolhei", "dai" e
"mandai" (que o Diabo diz a Deus), também temos o imperativo
afirmativo, mas da segunda do plural ("vós"), que resulta de processo
análogo. Com "permiti", o Diabo não diz que permitiu; ele pede a Deus
que lhe permita.
Bem, o Diabo desce à terra, põe-se a trabalhar e logo consegue o
seu intento. "Clamava ele que as virtudes aceitas deviam ser substituídas
por outras, que eram as naturais e legítimas. A soberba, a luxúria, a preguiça
foram reabilitadas, e assim também a avareza... (...) Nada mais curioso, por
exemplo, do que a definição que ele dava da fraude. Chamava-lhe o braço
esquerdo do homem; o braço direito era a força; e concluía: Muitos homens são
canhotos, eis tudo. (...) A demonstração, porém, mais rigorosa e profunda, foi
a da venalidade. (...) A venalidade, disse o Diabo, era o exercício de um
direito superior a todos os direitos. Se tu podes vender a tua casa, o teu boi,
o teu sapato, o teu chapéu, coisas que são tuas por uma razão jurídica e legal,
mas que, em todo caso, estão fora de ti, como é que não podes vender a tua
opinião, o teu voto, a tua palavra, a tua fé, coisas que são mais do que tuas,
porque são a tua própria consciência, isto é, tu mesmo?".
"Um dia, porém, longos anos depois notou o Diabo que muitos
dos seus fiéis, às escondidas, praticavam as antigas virtudes." Isso
assombrou o Diabo, que foi a Deus para "conhecer a causa secreta de tão
singular fenômeno". E Deus: "Que queres tu, meu pobre Diabo? (...) É
a eterna contradição humana".
O Diabo não teria esse desgosto se tivesse construído a sua igreja
na capital de certo país... Os seus fiéis não teriam nenhuma recaída. É isso.
[Fonte: www.folha.com.br]
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