Há um bom
tempo, quando uma cervejaria lançou o bordão "A cerveja que desce
redondo", muita gente me perguntou (e ainda pergunta) se ela não deveria
descer "redonda".
É claro que
recebi também taxativas afirmações de que a construção "A cerveja que
desce redondo" é errada, não tem salvação etc. Essas afirmações me lembram
as de quem ainda insiste em dizer que, se não existe "estudanta", não
pode existir "presidenta". Então tá. Falta explicar o caso de
"governanta"...
Bem,
voltando ao tal bordão, é claro que é mais do que vernácula a construção
"A cerveja que desce redondo". Por acaso o caro leitor nunca disse
algo como "Ela não faz nada direito"? Ou será que diz "Ela não
faz nada direita"? E algo como "Ela me olhou torto"? Será que
equivale a "Ela me olhou torta"? E "Elas nunca falam
sério"? Será equivalente a "Elas nunca falam sérias"?
O fato é
que, em português (e em outras línguas), é muito comum o emprego do adjetivo do
qual se forma o advérbio terminado em "-mente" no lugar desse mesmo
advérbio.
Tradução: em
vez de "Ela me olhou tortamente" (frase correta, vernácula, na qual
se emprega o advérbio de modo "tortamente", que deriva de
"torto"), costuma-se dizer "Ela me olhou torto", em que
"torto", que vem ao mundo como adjetivo, equivale a "tortamente".
Note que, em
"Essas meninas nunca falam sério", o termo "sério" é
advérbio e equivale a "seriamente", "de modo sério"
("Essas meninas nunca falam seriamente/de modo sério"); em
"Essas meninas nunca falam sérias", o termo "sérias" é
adjetivo e qualifica diretamente "Essas meninas". O que se diz com
essa frase é que essas meninas nunca estão sérias quando falam.
É bom que se
diga que nem sempre o falante opta pela troca do advérbio terminado em
"-mente" pelo adjetivo que lhe dá origem. Quando se trata de início
de frase, por exemplo, esse encurtamento não costuma ocorrer: não se
diz/ouve/lê algo como "Curioso, ela acabou optando pela proposta menos
vantajosa"; o que se diz/ouve/lê é "Curiosamente, ela acabou optando
pela...".
Os casos em
que se nota o "encurtamento" do advérbio terminado em
"-mente" mostram uma tendência viva na língua: a
"economia", a opção pela forma mais curta. Exemplos não faltam. Por
acaso não dizemos "Esse piso escorrega", no lugar de "Escorrega-se
nesse piso", ou "Esse biscoito vende bem", no lugar de
"Vende-se bem esse biscoito"/"É bem vendido esse biscoito"?
Um caso
aparentemente recente chama a atenção: o pessoal do rádio e da TV deu de trocar
"antecipadamente" pela locução "de forma antecipada"
("Os ingressos foram vendidos de forma antecipada").
Também se
ouve muito "O time conquistou o torneio de forma invicta". Sim,
"...conquistou invictamente" talvez doesse, mas por que não
"...conquistou o torneio invicto"?
Permita-me
perguntar, caro leitor: que vantagem Maria leva com "de forma
invicta", "de forma antecipada"? Isso tem cheiro de modismo, o
que é muito comum no nosso jornalismo, sobretudo no de rádio e TV. Alguém usa,
outro alguém acha bonito, chique, e aí a coisa "pega" e, muitas
vezes, assim como vem, vai.
Em língua
também existe bom gosto, sim. Bom gosto, eufonia, naturalidade etc.
"...foram vendidos antecipadamente" parece bem mais natural do que
"...foram vendidos de forma antecipada". É isso.
[Fonte: www.folha.com.br]
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