sexta-feira, 11 de setembro de 2015

Obra de ficção cria 'liminar' e vira alvo de investigação da PF

Escritor Ricardo Lísias, autor do e-book "Delegado Tobias", recebeu intimação para depor

Inquérito investiga documento nos moldes de uma decisão judicial real que autor publicou em suas redes sociais


Escrito por ARTUR RODRIGUES

Conhecido por mesclar elementos de ficção e realidade em seus livros, o escritor Ricardo Lísias, 40, nunca imaginou que sua obra fosse ganhar vida de verdade.

No e-book "Delegado Tobias", em que o personagem título investiga a morte do escritor Ricardo Lísias, o autor usou nomes de pessoas reais, recortes de jornais e documentos judiciais, criando uma permanente desorientação no leitor.

O experimento se estendeu às redes sociais, onde foram publicados trechos da obra.

A história chegou à polícia, ao Ministério Público e à Justiça federais, que parecem não ter entendido o conceito.

Resultado: um inquérito foi aberto para investigar a suspeita de falsificação e uso de documento público por Lísias em sua obra de ficção.

"Eu não falsifiquei o documento, eu inventei o documento", diz Lísias, autor de livros como "Divórcio" e "O Céu dos Suicidas". "A literatura foi para a página policial. Agora, virou realidade."

Em um dos documentos criados para o folhetim virtual, com aparência similar à de uma decisão judicial real, um relator fictício do Tribunal Regional Federal da 3ª Região, João Eleonor Freire Costa Neves, defere liminar para retirar a obra "Delegado Tobias" de circulação.

A justificativa é que o público leitor médio "não tem discernimento suficiente para discernir se está diante de uma obra de ficção ou um mero relato".

O caso passou a ser investigado no mundo real após a assessoria de imprensa da Justiça Federal repassar denúncias sobre a publicação da decisão falsa no perfil do escritor no Facebook.

O Ministério Público Federal avaliou que havia indícios de crime de falsificação e determinou a abertura de inquérito. Nesta semana, Lísias recebeu intimação para prestar depoimento, marcado para outubro.

Para o advogado do autor, Pedro Luiz Bueno de Andrade, elementos artísticos, no caso das decisões fictícias, foram descontextualizados, levando a um equívoco.

"Juridicamente falando, para responder pela falsificação de documento público, ele tem que ser capaz de causar prejuízo a alguém", afirma.

Surpreso com a investigação, o escritor conta que até o momento nem mesmo as pessoas reais transformadas em personagens da obra ficaram ofendidas.

LIMITES DA FICÇÃO

Entre os nomes reais citados está o do professor de literatura Pedro Meira Monteiro, da universidade norte-americana Princeton.

"O experimento ficcional do Lísias é justamente testar os limites da ficção, aproximando-a da realidade, de maneira que essas situações aconteçam: alguém se sente dentro dela, como se fosse presa da ficção", afirmou o professor, por e-mail.

"O que eu não entendo é que a polícia não entenda que se trata de ficção, portanto é óbvio que os documentos são falsos. Falsos, não falsificados! Eles estão preocupados com uma realidade paralela", diz, classificando o caso como "esquizofrênico".

A Justiça Federal afirmou que recebeu diversos questionamentos de jornalistas sobre os documentos publicados no Facebook do escritor e que apenas informou a Procuradoria sobre a possibilidade de serem falsos.

Já a Procuradoria afirmou que, ao receber a notícia, "encaminhou os elementos disponíveis" à PF para investigação. O órgão afirmou ainda que o procedimento está em curso, sem previsão para ser concluído.

A PF afirmou que "não investiga escritores por suas obras de ficção".

No entanto, o inquérito foi instaurado em razão da requisição do Ministério Público Federal, que obrigatoriamente tem de ser cumprida.

[Fonte: www.folha.com.br]


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