Neste espaço já afirmei várias
vezes que, em língua, o que é "certo" hoje pode ter sido
"errado" ontem. No século 17, Gregório de Matos escreveu "...da
vossa alta piedade me despido", porque era "despido" a forma
"certa" da primeira do singular do presente do indicativo de
"despedir" (que já tinha sido "despidir" e
"despidyr"). Hoje a forma usada é "despeço", que se apoia
na flexão equivalente de "pedir" ("peço").
Pode-se falar também
da mudança de valor de formas verbais. Não preciso explicar o que significa
hoje a locução "tenho dito" em "Tenho dito a eles que essas
coisas...", mas qual será o valor dessa locução quando se encerra com
veemência um pronunciamento ("E tenho dito!")?
Trata-se de
resquício do valor que essa locução já teve. "Tenho feito" já
significou "fiz", "tenho visto" já significou
"vi", portanto "tenho dito" já significou
"disse". Moral da história: "E tenho dito"
significava/significa "E (eu) disse", isto é, "Eu disse o que
havia para ser dito".
Há algum tempo a
Unicamp incluiu no seu vestibular uma questão que se apoiava neste texto,
publicado em 1895: "Tem havido no Mar Negro grande tempestade, naufragando
grande número de embarcações. Até agora o mar tem arrojado à praia mais de 80
cadáveres...".
A expressão
"grande tempestade" (no singular) impede que se entenda "tem
havido" com o sentido hodierno. "Tem havido" significava
"houve"; "tem arrojado" significava "arrojou" (=
"lançou").
Outras mudanças de
valor, que podem ocorrer por diversas razões, nem sempre são incorporadas ao
uso formal. Um desses casos é o da locução "de encontro a", que, na
língua culta, desde sempre equivale a "contra", "em oposição
a", embora na língua corrente seja largamente usada com o seu sentido
oposto. É um tal de "O projeto vem de encontro ao nosso ideal, por isso
vamos aceitá-lo", que já se tornou difícil empregar "de encontro
a" com o seu sentido original.
Veja o que escreveu
recentemente a jornalista Juliana Vines no blog "A Chata das Dietas"
sobre o excesso de gordura de um recém-lançado sanduíche: "A iniciativa
vai de encontro à onda saudável que parecia ter atingido as redes de fast
food". Perfeito, não? A relação entre a gordura do sanduíche e a tal
"onda saudável" é mesmo de oposição.
Agora veja o que
saiu dia desses sobre a renovação do contrato de dois jogadores do Vasco da
Gama: "As renovações contratuais vão de encontro as afirmações do
presidente Eurico Miranda de que os dois jogadores eram inegociáveis e
permaneceriam em São Januário".
E então, caro
leitor? As renovações vão mesmo de encontro às (e não "as", como
saiu) afirmações de Eurico? É claro que não, a menos que se considere legítima
a inversão do sentido da locução "de encontro a" (essa inversão ainda
não encontra abrigo nos dicionários).
Como sou macaco
velho, fui ao site do Vasco e constatei que tinha havido uma transcrição (ruim)
do que o site publicara. Sabe o que estava lá? Exatamente isto: "As renovações
contratuais vão ao encontro das afirmações do presidente Eurico
Miranda...". O texto do site do Vasco foi redigido de acordo com o que se
vê na escrita formal culta.
Talvez pelo
incontrolável cacoete de empregar sempre "de encontro a" (qualquer que
seja o sentido da mensagem), até na transcrição de um texto se inverte o
"sinal" dessa locução... É isso.
[Fonte: www.folha.com.br]
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