Por Leyla Perrone-Moisés
Maurice Nadeau, morto no último dia 16, aos 102 anos, foi uma das
pessoas mais notáveis que tive a sorte de conhecer. Nosso contato
começou em 1969, quando ele dirigia a editora Denoël e me encomendou um
prefácio para a edição francesa de “Nove, Novena”, de Osman Lins.
Desde então, em todas as temporadas que passei na França, frequentei a
redação de sua revista, “La Quinzaine Littéraire”. Ao longo dos anos,
publiquei nela numerosos artigos sobre literatura francesa, portuguesa e
brasileira.
Em 2001, quando ele fez 90 anos, eu estava em Paris e decidi que já
era mais do que tempo de fazer uma entrevista com aquele “monumento” da
cultura francesa.
O cartão aqui reproduzido me foi enviado por ele quando recebeu o
exemplar do suplemento “Mais!”, publicado pela Folha, com a entrevista.
A biografia de Nadeau é belíssima. Filho de um camponês e uma
faxineira, foi um “pupilo da nação”, como eram chamados aqueles cujos
pais tinham morrido na guerra de 1914, e se beneficiou do excelente
ensino público de seu país naquele tempo. Ainda muito jovem foi
professor e repórter do “Combat”, jornal de Camus.
Foi comunista, depois trotskista e resistente durante a Segunda Guerra. Em 1945 publicou a “História do Surrealismo”.
Fundou a revista “Les Lettres Nouvelles”, que depois se transformou
em editora. Em 1960, em plena guerra colonial, foi um dos 120 corajosos
que assinaram um manifesto em favor da independência da Argélia.
Estar com Nadeau, que tinha excelente memória, era estar na companhia
de uma enciclopédia literária viva, porque conheceu todos os grandes
escritores franceses e muitos estrangeiros do século 20.
Como editor, foi o primeiro a publicar textos de alguns que se
tornariam célebres, na França e no mundo: Beckett, Henry Miller,
Gombrowicz, Barthes, Bataille, Nathalie Sarraute, Perec… a lista é
infindável. Logo que seus “achados” eram reconhecidos, passavam a ser
publicados por grandes editoras, e Nadeau não lucrava nada.
Em 1966, fundou “La Quinzaine Littéraire”, que se tornou modelo de
revistas literárias através do mundo e que dura até hoje, sempre à beira
da falência, apesar de seus colaboradores, alguns ilustríssimos, nela
escreverem gratuitamente.
A última batalha de Nadeau foi justamente para salvar a revista. Um
mês antes de morrer, fez um apelo aos colaboradores e assinantes para
que se tornassem acionários. Teve amplo retorno.
O homem Nadeau foi realmente “um cara formidável”. Alto, forte e
sisudo, falava o francês do povão. Sob essa aparência um pouco rude, era
uma águia de inteligência, um coração mole e um fino humorista. Era,
sobretudo, de uma real modéstia.
Atribuía à sorte o fato de tantos gênios da literatura o haverem
procurado e qualificava sua atividade como a de um mero intermediário,
um servidor dos escritores.
Suas memórias, publicadas em 1990, se intitulavam “Graças lhes Sejam
Rendidas”. Desde a juventude, sua paixão pela literatura o tornou avesso
aos critérios ideológicos e o fez defensor de textos inovadores e
fortes, mesmo que as opiniões pessoais dos escritores fossem diferentes
da sua.
Nadeau era aberto para o Brasil, como para o mundo todo. Em 1976,
colocou em matéria de capa um artigo meu sobre a “Revista de
Antropofagia”, e sua última editora publicou Mário de Andrade.
As reuniões na Redação da revista eram comandadas por ele com
simplicidade. Nadeau não precisava se impor; os que ali estavam o
admiravam. Os jantares de aniversário da “Quinzaine”, presididos por
ele, também eram memoráveis.
Na entrevista de 2001, ele exprimia sua descrença com relação ao
futuro da grande literatura que editou e defendeu. Perguntado se ele
era, como tinha dito um dia, “o guardião do templo”, respondeu: “Agora
eu não diria mais isso. Não guardo nada e não sei se o templo ainda
existe”. Mas até seu último suspiro, ele batalhou desinteressadamente
pela literatura.
LEYLA PERRONE-MOISÉS é professora emérita da FFLCH-USP e
autora de vários livros, entre os quais “Altas Literaturas” e “Vira e
Mexe, Nacionalismo” (Companhia das Letras).
[Foto: Alain Azambuja/Folhapress - fonte: www.substantivoplural.com.br]
Sem comentários:
Enviar um comentário