Não seria melhor dizer que brasileiros e portugueses usam de modo
diferente os pronomes "si" e "consigo"?
Estava na "capa" de um site de notícias, ontem: "Ex-chefe do TJ liberou 1,5
milhão para si próprio". Quando cheguei ao jornal, já havia mensagens de
leitores que questionavam o emprego da expressão "para si próprio". Vamos lá,
pois.
De início, é bom lembrar que "si" é pronome pessoal do caso oblíquo e
pertence às duas terceiras pessoas (singular e plural): "Vive cheio de si";
"Caíram em si e silenciaram".
Convém dizer também que alguns dos nossos dicionários e gramáticas registram
esse pronome apenas como indicador de processo reflexivo ("Ela só pensa em si")
ou recíproco ("Acertaram entre si as datas"). No primeiro exemplo ("Ela só pensa
em si"), o pronome "si" tem valor reflexivo porque se refere ao sujeito ("ela").
Tradução: "Ela só pensa em si" significa que ela só pensa nela mesma, em si
mesma, em si própria.
A esta altura, o caro leitor talvez esteja se lembrando de algum romance
português que tenha lido vida afora e das várias ocorrências de construções como
"Ela só pensa em si", em que o "si" não se refere ao sujeito ("ela"), mas ao
interlocutor. Tradução: no português de Portugal, a frase "Ela só pensa em si"
tem significado diferente do que tem no português brasileiro. Quem a emite usa o
"si" em relação ao seu interlocutor. Tradução: no português de Portugal, "Ela só
pensa em si" significa que ela só pensa na pessoa com a qual está conversando
(ou "está a conversar", como diria a maior parte dos portugueses).
O fato de alguns dos nossos dicionários e gramáticas não reconhecerem esse
uso lusitano (e também um pouco brasileiro) cria uma situação no mínimo
estranha. Como fica, por exemplo, o vestibulando que lê uma obra de um autor
português (clássico ou contemporâneo) e encontra um sem-número de registros
desse pronome (e de "consigo") iguais aos considerados "errados" pelos nossos
dicionários e gramáticas? Não seria melhor fazer o que faz o "Houaiss", por
exemplo, que, no verbete "si", diz que "é muito comum em Portugal (no Brasil,
menos) o emprego de si em relação à pessoa com quem se fala ("Gosto muito de
si")?
Para deixar claro: parece-me razoável dizer que, no português culto do
Brasil, não ocorre o uso dos pronomes "si" e "consigo" em relação à pessoa com
quem se fala, ou seja, não ocorrem construções como "Gosto muito de si", "Quero
ir consigo", "Amanhã falo consigo" etc., que, no entanto, são mais que comuns (e
legítimas) em Portugal, seja na oralidade, seja na escrita. Parece melhor assim,
não? Convém dizer que, na língua culta do Brasil, teríamos estas formas: "Quero
ir com você" ("com o senhor", "com a senhora"), "Amanhã falo com você" ("com o
senhor", com a senhora").
Para quem ainda não entendeu, deixo claro que se trata de uma questão de uso
(e, como se sabe, o uso é o senhor da questão, quando o assunto é língua), e não
pura e simplesmente de "certo ou errado".
Voltando à frase da qual se extraiu o título desta coluna ("Ex-chefe do TJ
liberou 1,5 milhão para si próprio"), convém dizer que é comum e mais do que
legítimo o emprego de uma expressão de reforço como "mesmo" ou "próprio" depois
do "si" que denota ação reflexiva ("Sempre exige muito de si mesmo/próprio").
Como se vê, no título citado, o emprego de "para si próprio", que se refere ao
sujeito ("ex-chefe do TJ"), é mais do que legítimo. No plural, teríamos isto:
"Ex-chefes do TJ liberaram 1,5 milhão para si mesmos/próprios".
É isso.
[Fonte: www.folha.com.br]
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